segunda-feira, novembro 12, 2007

Sigo sempre o meu próprio caminho



Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí!
Só vou por onde Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
José Régio

3 comentários:

Anónimo disse...

Seja muito bem-vinda! Que quem traz poesia é sempre bem-vindo! José Régio sempre me deixou de pé ligeiramente atrás pelos seus ideais assumidamente socialistas, mas a sua poesia e a sua capacidade artística é de uma qualidade inegável. Cântico Negro é um poema em que existe um confronto entre o individual e o colectivo. Em muitas alturas do poema é transmitida a sensação de que o "eu" deve tomar um caminho diferente de todos os outros apenas por uma questão de ruptura com os cânones, de forma a esquecer o "sangue velho dos avós" apontando o seu caminho para o "Longe" e para a "Miragem". A desobediência à norma, apenas como forma de manifesto do "eu", não me agrada. Porém, no fim do poema, podemos vislumbrar uma ambiguidade de significado na definição de vida. A onda que se alevanta, ainda assim pertence ao mar. E o "átomo a mais que se animou", e que é único por se ter animado, é parte constituinte de tudo o que existe no Universo. Uma parte de um todo.

Mariana Mar disse...

É necessário contextualizar este poema no inicio do século XX e particularmente no futurismo para se entender alguns versos que referiste. O futurismo foi uma vanguarda que se estendeu a vários níveis incluindo a literatura e caracteriza-se pela rejeição radical e absoluta de tudo o que o antecede. Os seus seguidores tinham na queima de livros antigos um passatempo e planeavam destruir a cidade de Veneza e reconstrui-la com predios..
Outro ponto que importa frisar é que no inicio do século anterior enquanto na Europa proliferavam vanguardas o nosso país encontrava-se imensamente atrasado devido a tacanhice da sua população. Assim todos os vanguardistas, entre eles futuristas com José Régio era ostracizados sem piedade da sociedade. Daí o criar desumanidade, o abrir novos caminho mesmo quando mais ninguem concorda

Anónimo disse...

Sim, eu sei. Com certeza que se falo de certo tema, faço-o consciente de ter conhecimentos minimos para o fazer. O "atraso" do nosso país foi evidenciado pelos futuristas portugueses, que manifestaram uma vontade de novo rumo. No entanto, e aqui creio discordar de José Régio, um novo rumo não deve ser tomado apenas como forma de rebelião, nem deve ser descurada a importância do passado ("do sangue velho dos avós"), como não deve também ser posto o interesse individual à frente do interesse colectivo do país.
Fernando Pessoa, por exemplo, em a "Mensagem", sabe que "é a hora!", mas nem por isso se esquece da importância da criação de Portugal e do esforço que é preciso para "passar além do bojador".