Vou agora transcrever-vos um capitulo de um livro de Francisco José Viegas, chamado "Longe de Manaus". Este escritor, além de ser despretensioso, uma qualidade algo rara actualmente, e simpático, escreve romances policiais invulgares, recheados de uma beleza poética e profundidade filosófica que fazem falta à nossa literatura actual. Aconselho vivamente. Mas podem decidir por vocês. É longo mas vale a pena, este excerto.
"Talvez as pessoas queiram, Isaltino, um pouco de ordem na visa. Por isso casam, têm filhos e, mesmo quando se divorciam, escolhem dias para ficarem juntos ou simplesmente para telefonarem em dias certos. As pessoas têm necessidade de rituais. Rituais de acasalamento, de encontro, de encontro, de fuga. É um pouco de disciplina, de ordem - no meio da paixão e da própria vida. Eu nunca te falei dos meus sonhos. Sonho muitas vezes com pessoas da minha família, já desaparecidos, e com um tio que foi para o Brasil e nunca mais foi visto. Não sei o que o afastou de nós, ou da sua terra, da casa. Só sei que partiu. Há muita gente que parte. Muita gente que desaparece.
Por isso, Isaltino, as pessoas precisam de alguma ordem na vida. Um pouco de ordem, uma casa onde estão fechadas durante uma parte da vida e onde se sentem seguras e onde os amigos chegam e são recebidos, e há cobertores e água fresca e cerveja. Também nunca te falei dos meus demónios. Os homens duros não são sempre duros. Há um momento de repouso tal como existe a melancolia a meio da batalha. Um momento de perdição tal como existe a crueldade do tempo que passa por nós e nos deixa velhos, cada vez mais velhos.
Passei muitos dias fechado em casa. Não era preciso mais ninguém saber. Durante esses dias não li um livro, não vi televisão, não ouvi um disco, não atendi os telefonemas durante o dia nem a meio da noite, não fiz a barba, não não tive pena de mim próprio. Eu não gosto de ter pena de mim próprio. Compreendo, sem ser preciso mais ninguém saber, a vida desses homens solitários. E a dos que destruíram a sua vida dos que nunca foram solitários. E a dos que destruíram a sua vida porque pisaram um risco desnecessário. A dos que deixaram para trás amores quase perfeitos, imagens de felicidade. E compreendo a vida dos que não cabem no mundo dos que não cabem no mundo dos solitários nem no dos que estão sempre acompanhados, e não têm família, filhos, bibliotecas, aparelhos de ar condicionado, abre-latas eléctricos, colecções de automóveis em miniatura. Eu não gosto de ter pena de mim próprio. Tenho saudades das mulheres que amei, especialmente de quem me empurrou para fora da sua vida. Pensei voltar atrás muitas vezes, bater-lhes à porta e recomeçar a viver nesse idílio de que os adolescentes gostam muito. É por isso que os adolescentes querem sempre regressar aos lugares em que foram felizes. Nós, os velhos, temos uma amargura qualquer presa à pele, e gostamos dela, como se gosta do amargo de um charuto, de uma ida ao barbeiro, de uma viagem de comboio. Tenho saudades de coisas que não conheço. Muitas vezes essas mulheres são uma só. Rita Pereira Gomes guardando os seus segredos, eu imagino-a muitas vezes sentada numa cadeira, em pleno Verão, diante do vale e das montanhas, esperando a morte vadiando no Porto, dormindo com rapazes que eram estudantes da faculdade, ou com jovens actrizes que conheceu por acaso, ou alunas de Belas-Artes que lhe bateram à porta porque ela foi famosa algum dia, alguma vez. De toda a gente que se perdeu pelo mundo quando perdemos o Império, o Brasil, Angola, Moçambique, Timor, são Tomé, Guiné, Cabo Verde, eu admiro as mulheres que se perderam também com essa terra toda, terra imensa, terra vermelha, alaranjada como a da Guiné, pálida como a de angola, vermelha como a de Moçambique. As mulheres que voltaram atrás, preseguidas por uma poeira, como Mara Salimah. As que nunca encontraram uma casa, como Rita Pereira Gomes. A falar verdade, Isaltino, eu não tenho saudades de nada. Se eu pensar bem, não tenho saudades de nada. Não tenho saudades da adolescência, não tenho saudades das mulheres. Faço um esforço. Devemos todos fazer um esforço.
As pessoas querem uma ordem na vida. Quando começam a envelhecer querem que essa ordem desça sobre elas como a primeira chuva de Verão. Mas as coisas não são assim. Tu queres que a morte de Shirlei tenha um sentido nesta história. Não tem. Há coisas que têm um sentido e coisas que não têm sentido nenhum, são apenas um ruído, uma espécie de desvio. Uma vaga de calor. Uma coisa muito breve, muito parecida com a sensação de haver pessoas solitárias que desperdiçam oportunidades ou que não têm saída. Vê tu o que temos: pessoas solitárias. Julgamos sempre que não existem. julgámos que não existiam. Elas vêm ter connosco. Vivem sozinhas ou não. Vivem numa casa que ninguém conhece e um dia aparecem mortas. Vivem com uma família perfeita e um dia o passado aparece para devorá-las e pedir satisfações. Uma desgraça nunca vem só Isaltino. Aqui ou no Brasil, aqui ou em qualquer outro lado.
As pessoas falam da solidão mas julgam que é um problema delas. Apenas delas. Os escritores inventam uma história e acham que a literatura é obra da solidão. E os músicos, os cineastas, os detectives privados que investigam adultérios nos subúrbios, os industriais de cerâmica, os contabilistas. Mas não é verdade. Aqui ou em qualquer outro lugar. Também somos gente solitária. Gente assim."