sábado, dezembro 23, 2006

A função da lei criminalizadora do aborto




Voltemos ao assunto do aborto, e correlacionemos esse assunto com o papel que as leis devem ter numa sociedade. Que papel deve ter as leis dos homens e o Direito, como ordem dirigida a um fim último, seja ele o bem comum, ou a preservação dos direitos e estabelecimento dos deveres de cada um? E que papel têm as penas criminais, na nossa sociedade? Apenas uma função retributiva, castigadora? A função de prevenção geral, admoestando os cidadãos para as consequências dos seus actos, ou particular, advertindo o condenado das consequências de voltar a praticar o mesmo crime? Uma função reabilitadora, visando a reintegração do individuo na comunidade, já desprovido das suas intenções criminosas? Ou uma função moralizadora da sociedade, uma reprovação da colectividade exprimida nas leis positivas, que estabelecendo as regras de conduta aceitáveis e as sanções para quem as violar, procuram promover a paz e desenvolvimento social? Os fins do Direito, a existência de um direito superior às leis dos homens, e portanto a possibilidade da injustiça destas e o direito à desobediência e a função das penas criminais privadoras da liberdade, são questões amplamente discutidas na doutrina jurídica desde os primórdios do direito.
Pessoalmente penso, que as penas criminais tem uma função mista e muito abrangente, podendo ser reconduzíveis a todas essas funções, consoante a natureza do crime e do agente do mesmo. Mas para mim a função mais importante, será aquela menos evidente para a maior parte das pessoas, a função de zelar pela moralização e bons costumes de uma comunidade. Se bem que em certa medida, não há senão que concordar com o grande Sr. Professor J. Baptista Machado quando disse: “Uma excessiva tutela de normas morais pelo Direito corre o risco de se converter numa tutela moral da Sociedade pelo Estado, numa tutela capaz de propiciar uma pedagogização da mesma sociedade e de promover a intolerância geral”; também é verdade que compete ao Estado, numa sociedade moderna cada vez mais hostil a qualquer tipo de profundidade ou valores, lutar por preservar os bons costumes e a paz social, através da protecção jurídica dos direitos, deveres e bens, usando das suas normas coercivas para evitar o caos e a desagregação em que a comunidade cairia, caso se encontrasse completamente desprovida de valores. A procura de um bem comum, de um desenvolvimento a todos os níveis de uma comunidade, agregada em torno de um mesmo sistema de normas não é de todo incompatível com a tutela dos direitos do individuo. Pois não nos podemos esquecer, que se a liberdade individual deve ser preservada, a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade do outro, e com os direitos vêm necessariamente deveres, porquanto o primeiro deles é respeitar a liberdade de outrém. O Homem vive essencialmente na sociedade e é tanto individualmente como colectivamente, que se realiza. Precisa que tanto que a sociedade na qual se integra, proteja os seus direitos e a sua liberdade, como tem com ela deveres irrenunciáveis, de modo a que todos e cada um possa usufruir dos seus benefícios e da paz que essa ordem jurídica confere. A medida desses direitos de liberdade será objectivamente igual para todos, pois o constrangimento da liberdade de cada um só é legítimo se a medida do mesmo for igual para todos. Caso contrário o egoísmo de cada um consumiria inevitavelmente a sociedade, que deixaria de ser sustentada na restrição recíproca de direitos e deveres, para passar a assentar na tirânica usurpação por alguns de todos os direitos e na exploração dos mais fracos, onde todos se tentariam libertar dos deveres para com a comunidade, que consequentemente deixaria de existir enquanto tal. A definição de Direito de Kant é disso mesmo explicativa: “O Direito é o conjunto das condições graças às quais a faculdade de agir de cada um pode coexistir com a faculdade de agir dos outros em conformidade com uma lei universal de liberdade”.
É por isto mesmo que concordo com o Sr. Professor Germano Marques da Silva quando disse: “Também é condição da própria vida democrática que na comunidade estejam bem vivos a moral e os bons costumes, o que o Direito por si só não pode garantir. Como não desculpar os delinquentes quando o cinema e meios de comunicação social convidam à agressividade, à desvergonha e escarnecem quotidianamente a moral social. Como podem ser credíveis as normas incriminadoras quando se proclama a legitimidade de certas formas de criminalidade intrínseca, como o aborto e a eutanásia? Quando os maiores criminosos são frequentemente apresentados como heróis ou vitimas?”. Lembram-se dos recentes distúrbios em Paris, causados por jovens de bairros da periferia, de que algumas destas imagens são representações?
Será por todas estas razões correcto eliminar uma lei, apenas porque as mulheres que praticam o aborto são consideradas umas perseguidas, pelos adeptos da descriminalização e pela comunicação social, que como todos vemos é sempre adepta da infâmia, da ilegalidade e da libertinagem e da liberalização face à proibição (quem sabe se por causa dos supostos “traumas” que sofreu com a censura)? Ou porque as forças de coação, como a polícia e os tribunais, são incapazes de acabar com as constantes violações à lei? Se é verdade que não pode ser o Estado a impor a moral à sociedade, verdadeira é também a sua função de polícia do cumprimento dos bons costumes e das leis positivas, que são algumas derivadas dos grandes princípios da moral e da lei natural preexistentes e hierarquicamente superiores às primeiras. Mesmo que rejeitem a existência de um ser humano, cujo direito à vida está a ser posto em causa com a legalização do aborto, e portanto cuja possibilidade de dispor da sua liberdade está a ser exterminada de raiz, o reconhecimento pela consciência humana da reprovabilidade de tal acto é incontornável. Consequentemente, dada a inegável violação de importantes princípios apreendidos pela razão, superiores e existentes independentemente da sua prescrição em leis promulgadas pelo governo dos homens ou não, a sua repressão torna-se imperativa para evitar o desmoronamento da comunidade.
Porque sem os seus valores, sem a defesa dos mesmos, sem a punição de quem os infringe e sem a reprovação social desses mesmos actos infractores, a sociedade enquanto lugar de realização do homem, através da promoção dos seus direitos não tem razão de ser. Temos claramente é de criar as condições necessárias para que a lei possa ser aplicada coercivamente, a quem infrinja qualquer disposição legal e não revogar a lei permitindo actos imorais que só levam à maior degradação dos valores, só porque os crimes continuam a acontecer e não são evitados ou prevenidos. Quem usa o argumento falacioso de que apesar de ser proibido, vão continuar a acontecer abortos clandestinos em vãos de escada por isso mais vale legalizá-lo, porque é melhor para a saúde das mulheres, como se a mulher fosse a única vitima nesta sem sombra de dúvida realmente dramática situação, não faz qualquer sentido. A lei serve nem que seja como uma indicação para os membros da comunidade, daquilo que devem ou não fazer. Serve para que aqueles indivíduos que têm a sua consciência deformada, ou indistinta a separação entre o bem e o mal, terem linhas de orientação e evitarem os actos que a infringem, prevenindo assim a deterioração do bem comum, da paz, ordem e desenvolvimento da sua sociedade. É nesta vertente, que se dá a função moralizadora da lei a conhecer. Não como impositora da moral à sociedade, mas como preservadora dos valores da moral humana. Valores que assentam na dignidade inerente a qualquer ser humano, só pela razão de o ser (uma ordem de príncipios superiores e organizadores de toda a acção humana, acção que com eles se deve conformar) -direito natural. Prevalecente mesmo contra certas vozes dissidentes dentro de si, que já não partilham erradamente desses mesmos valores e pretendem impor a sua desmoralização à restante sociedade ou sobre as leis injustas (criminalizadoras ou descriminalizadoras) e as ditaduras (da maioria ou não), que afrontam esses grandes príncipios fundamentais da nossa própria natureza.

1 comentário:

Anónimo disse...

Este post, “A função da lei criminalizadora do aborto”, introduz a questão do relaccionamento entre o Direito e a Moral.

Convém, na minha opinião, recordar a Teoria do mínimo ético, dado que a legislação sobre o aborto lhe está directamente relaccionada. Esta teoria consite em dizer que o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarada obrigatória para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira espontânea as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não soçobre.

Por outro lado, no campo da moral, é impossível conceber um acto moral imposto pela força; só é possível praticar o bem, quando ele próprio nos atrai, por aquilo que vale, por si mesmo. Um dos pontos importantes da Ética Kantiana é precisamente o carácter espontâneo do acto moral. Quando, ao contrário, agimos segundo a força, somos vencidos, mas não convencidos. A moral é por isso, incompatível com a força.

No entanto, na minha opinião, o caso concrecto da legislação do aborto não pode satisfazer unicamente o mundo da moral, visto que lida com a vida humana, um dos valores, que penso, se sobrepõe à correcta aplicação de uma norma moral e por isso, justificadamente, o Direito deve fazer uso do seu poder coersivo, que o distingue da Moral.


P.A.